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Nova Lei de Licitações – o seu objeto, a pretensão de ser norma geral e a crítica à sua característica burocratizante - Marcelo Palavéri.

O que a nova Lei disciplina

            Para definirmos o contorno da nova Lei de Licitações, Lei 14.133/21, é de fundamental importância termos em mente o que a União pode disciplinar a respeito. Nesse sentido, há que se verificar o estabelecido pelo artigo 22, XXVII, da Constituição Federal:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:…

XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;       

 Extrai-se da norma constitucional que a lei em questão irá fixar normas gerais de Licitações e Contratos Administrativos, o que efetivamente anuncia fazer pela leitura de parte de seu artigo 1º:

Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange:

 I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa; …

            Muito já se discutiu a respeito do significado da expressão normas gerais, sendo relativamente aceito pelos estudiosos do tema o fato de que a Lei 8.666/93, que precedeu a lei ora estudada, assumiu no cenário normativo pátrio, ao menos no que diz respeito à maioria de suas normas, a condição de editá-las, assim consideradas nacionais, incidindo sobre os atos de todas as pessoas jurídicas que compõem a federação, sendo, portanto, a Lei 8.666/93 a lei mater, a grande referência normativa para todas as licitações públicas realizadas no Brasil, e  todos os contratos administrativos firmados em decorrência de certames licitatórios.

            À edição da Lei 8.666/93, com a condição de norma geral de licitações e contratos administrativos, seguiu a edição de centenas de normas federais que alteraram seu texto (centenas mesmo), além de outros marcos legais dignos de destaque, a Lei 10.520/02 (lei do pregão) , e a Lei 12.462/11 (lei que criou o RDC, Regime Diferenciado de Contratações Públicas), isso sem contar as normas para contratações específicas, destacadamente a Lei 11.079/04 (lei das PPPs) e a Lei 13.303/16 (lei que regula as licitações nas empresas estatais).

            Isso tudo, acrescido das normas de competência das demais pessoas jurídicas, que não a União, as legislações estaduais e municipais que pulularam no cenário normativo, especialmente depois que perdeu força a noção de que as regras da Lei 8666/93 continham sempre normas gerais intransponíveis (vide discussão a respeito da possibilidade das normas estaduais e municipais alterarem os procedimentos licitatórios com a inversão de fases), e também após o advento do pregão que exigiu normatização complementar das diversas esferas de governo.

            Construiu-se assim um verdadeiro cipoal de normas relativas às licitações e aos contratos administrativos, devendo se reconhecer a dificuldade de identificar de forma linear as regras aplicáveis a determinado caso, a exigir esforço por parte do operador do direito.                      

            Unificar essas normas, ao menos conferindo a ela uma espinha dorsal, é o que parece pretender a nova lei de licitações e contratos administrativos.

            Se efetivamente se prestar a tanto, já estará fazendo algo muito valioso.

 

Como a nova Lei cria essa nova normatização

            A principal e fundamental crítica que temos à nova lei de licitações e contratos administrativos é de que perdeu a oportunidade de ir além, de inovar em um campo vasto e de importância inquestionável, deixando de prestigiar a livre concorrência.

            A lei insiste, como veremos adiante, em manter um caráter formalista exacerbado, em criar mecanismos e técnicas para conter o abuso, em gerar extraordinários procedimentos burocráticos que em nada contribuem para a competição, agregando custos desnecessários às transações.

            Veremos que há mudanças, que são criados procedimentos inteligentes, idealizados a partir da experiência pretérita, baseados em especial nos entendimentos consolidados nas decisões dos tribunais, com destaque para aquelas adotadas e engendradas pelo Tribunal de Contas da União. Isso realmente existe, mas há muito mais, e prevalece, infelizmente, o contexto desconfiado, burocratizante, em alguns momentos talvez ainda maior que aquele tão criticado e execrado da Lei 8666/93.

            Assim, temos que a nova lei de licitações e contratos administrativos estabelece sua normatização baseada em um viés extremamente burocratizado, dando ênfase à forma, deixando de lado a finalidade maior do instituto.

            Conforme dito linhas atrás, depois de longos anos de estudo (o projeto que deu origem à Lei 14.133/21 estava no Congresso Nacional desde 1995, posto que se originou do projeto de lei 1292/95), chegamos a um resultado que é melhor que a Lei 8666/93 (convenhamos, era difícil fazer pior!), mas foi perdida a oportunidade de realmente avançar, de garantir a livre concorrência, de prestigiar mecanismos que levariam à implementação real das razões e objetivos procurados pela disputa licitatória, qual seja a busca da proposta mais vantajosa para a administração.

 

A manutenção da característica burocrática das licitações

            Aqueles que já tiveram a oportunidade de manusear e ler o texto aprovado no Congresso Nacional e agora transformado na Lei 14.133/21, a nova lei de licitações e contratos administrativos, devem ter visto que o legislador caiu em uma armadilha. Dispúnhamos de normas burocráticas para disciplinar a matéria, que sabidamente não surtiam efeito, ao menos no aspecto de garantir controle dos recursos públicos. Então, de certa forma, para corrigir essas falhas, burocratizamos ainda mais os procedimentos, tratando tudo com pormenores, com exigências sem fim, demandando justificativas para cada passo percorrido, engessando e amarrando com documentos até para os procedimentos mais simples e corriqueiros. Inchou-se a fase preparatória (antiga fase interna) da licitação.

            O Governo Federal de alguns anos para cá, vem editando instruções normativas para disciplinar seus procedimentos de licitações e contratos, estabelecendo regras que indicam efetivamente um aprimoramento no planejamento (vide IN 1/19 da Secretaria de Gestão do Ministério da Economia, que exige da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional; a IN 05/2017, da antiga Secretaria de Gestão do antigo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que dispõe sobre a contratação de serviços no âmbito da Administração Federal direta, autárquica e fundacional; a IN 01/2019, da então Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia; a IN 40/2020, da agora Secretaria de Desburocratização e Governo Digital do Ministério da Economia; e a IN 73/2020, também da Secretaria de Desburocratização e Governo Digital do Ministério da Economia).

            A tônica básica dessas regulamentações é a de estabelecer normas, detalhar procedimentos ao extremo, segregar funções…. Com efeito, esses mecanismos geraram para o Governo Federal uma organização, a padronização de procedimentos e ao que se vem apregoando, sem prova concreta, um controle mais eficaz, capaz de evitar desvios.

            Até aí tudo bem. O problema surge quando o texto aprovado, a nova lei, entende ser possível adotar para toda a nação, indiscriminadamente, esse modelo, esse fluxo de procedimento, onde cada etapa exige diversas providências, sendo que algumas até mesmo se repetem em momento futuro.

            Apenas para sentir qual a dinâmica deverá ser doravante empregada é oportuna a leitura de parte do artigo 18:

Art. 18. A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e deve compatibilizar-se com o plano de contratações anual de que trata o inciso VII do caput do art. 12 desta Lei, sempre que elaborado, e com as leis orçamentárias, bem como abordar todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação, compreendidos:

I – a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar que caracterize o interesse público envolvido;

II – a definição do objeto para o atendimento da necessidade, por meio de termo de referência, anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo, conforme o caso;

III – a definição das condições de execução e pagamento, das garantias exigidas e ofertadas e das condições de recebimento;

IV – o orçamento estimado, com as composições dos preços utilizados para sua formação;

V – a elaboração do edital de licitação;

VI – a elaboração de minuta de contrato, quando necessária, que constará obrigatoriamente como anexo do edital de licitação;

VII – o regime de fornecimento de bens, de prestação de serviços ou de execução de obras e serviços de engenharia, observados os potenciais de economia de escala;

VIII – a modalidade de licitação, o critério de julgamento, o modo de disputa e a adequação e eficiência da forma de combinação desses parâmetros, para os fins de seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, considerado todo o ciclo de vida do objeto;

IX – a motivação circunstanciada das condições do edital, tais como justificativa de exigências de qualificação técnica, mediante indicação das parcelas de maior relevância técnica ou valor significativo do objeto, e de qualificação econômico-financeira, justificativa dos critérios de pontuação e julgamento das propostas técnicas, nas licitações com julgamento por melhor técnica ou técnica e preço, e justificativa das regras pertinentes à participação de empresas em consórcio;

X – a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual;

XI – a motivação sobre o momento da divulgação do orçamento da licitação, observado o art. 24 desta Lei.

Se não bastasse, causa ainda espécie, o fato de que as exigências, em geral, são impostas para a preparação de todas as licitações e contratos que vierem a ser pensados, dos objetos mais simples e usuais, aos mais complexos, sem distinção.

            Efetivamente, acreditamos que a maioria dos órgãos administrativos, especialmente os municipais, não estão preparados para assimilar em curto espaço de tempo essas novidades, posto que distante de suas realidades e de suas disponibilidades financeiras e de pessoal.

           Estamos diante de um grande desafio. O momento é de preparação, de entender as mudanças, explorar os aspectos positivos, introduzir na realidade administrativa os novos procedimentos, e preparar os Municípios para efetivamente melhorar suas licitações e contratos administrativos, sempre na busca do interesse público.

 

Marcelo Palavéri – Advogado em São Paulo, especialista em Direito Municipal.

Publicado em 05/08/2021.

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