Artigo: Nova Lei de Licitações – Procedimentos Auxiliares – Sistema de Registro de Preço – A Figura do “Carona” tal como antes estabelecida - Marcelo Palavéri.
A Figura do “Carona” tal como antes estabelecida
O sistema de registro de preços, conforme foi anteriormente estabelecido em alguns regulamentos, como, por exemplo, o Decreto federal n° 3.931/01, o Decreto do Estado de São Paulo 47.945/03 e o Decreto do Município de São Paulo 44.279/03, autorizava a utilização da ata dele originária por outros órgãos que não tivessem participado do certame, perfazendo uma espécie de empréstimo do instrumento, o chamado “carona”. Essa contratação adicional não estava computada entre os quantitativos previstos originalmente por ocasião da licitação e o limite a ser respeitado era a observância, por cada órgão que se se propusesse a “pegar carona”, de 100% dos quantitativos registrados.
Na forma do que indicava o Regulamento Federal (Decreto 3.931/01), em seu artigo 8°[1], qualquer órgão da administração poderia socorrer-se do registro de preços anteriormente realizado. Exemplificamos: realizado um certame por qualquer órgão da Administração Federal com o propósito de registrar preços para futura aquisição de 100 veículos, e constituída uma ata de registro de preços, poderá um outro ente governamental de qualquer esfera federativa, que não tenha aderido ao certame, após consulta ao gerenciador da ata para conhecer o fornecedor e o preço, efetuar a compra do mesmo objeto no limite de 100 unidades. Observa-se que o regulamento não restringia o número de possíveis interessados no empréstimo, referindo-se à multiplicidade de órgãos e entidades; sendo assim, a ata que registrou o preço de 100 veículos para determinado órgão poderia, nos termos do decreto, ser utilizada por todos os demais órgãos da administração, multiplicando a quantidade estimada em inúmeras vezes (nesse mesmo aspecto, o Regulamento do Estado de São Paulo, já mencionado, indicava, no seu artigo 15B[2], de forma expressa, que as entidades e órgãos da Administração Estadual poderiam utilizar ata de registro de preços formalizada pela União, outros Estados, Distrito Federal e Municípios. Assim, além de permitir o empréstimo de suas atas, admitia também o aproveitamento de atas de órgãos de diferentes esfe ras de governo).
Essa sistemática gerou acalorados debates no meio jurídico, encontrando poucos defensores. Aqueles que entenderam possível a adoção dessa sistemática sustentam que a validade dessa prática consiste na desnecessidade de repetição de um processo oneroso, lento e desgastante, quando já alcançada a proposta mais vantajosa, sendo então um sistema desburocratizante, bastando os agentes administrativos encontrarem alguma ata de registro de preços pertinentes ao objeto que se pretenda contratar, e, se as condições forem convenientes, ajustar diretamente, sem maiores burocracias e formalidades.
O empréstimo da ata de registro de preços, sob o efeito prático, aparentemente ameniza formalidades e burocracias, as quais, contudo, não podemos dizer desnecessárias ou dispensáveis. Na forma como antes disciplinada, o fazia, no entanto, ao arrepio das normas legais, dos princípios que informam o procedimento de compra e contratação estabelecidos para o poder público, de modo que se apresentou como uma panaceia.
Teoricamente, inegáveis são os benefícios advindos da utilização da ata, com destaque para a celeridade; porém, necessário verificar que esse instituto não possuía previsão na Lei 8.666/93, ou na Lei 10.520/02, tendo sido introduzido por meio de regulamentos, meio impróprio para esse fim.
A nosso ver, então, seis foram os principais problemas jurídicos do instituto do “carona” (oportuno anotar que a posição doutrinária nunca foi consensual quanto a esses problemas).
Desse modo, o primeiro dos problemas encontrado refere-se ao desrespeito ao princípio da legalidade, pois na legislação então vigente não havia preceito que amparasse esse instituto.
Também, em segundo lugar, agredia ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, ao passo que o licitante vencedor poderia fornecer para diversos outros órgãos que não participaram da licitação. Desse modo, a licitação, processada para quantidade definida, e para órgão específico, seria em seguida geradora de contratos não previstos originariamente, sem que essa condição estivesse contemplada nas regras iniciais do certame.
O terceiro problema enfrentado referia-se à habilitação. Com efeito, ao se licitar determinado objeto, e diante das quantidades estimadas do ajuste futuro, é que se estabelecem as condições de habilitação a serem preenchidas pelos licitantes interessados, de modo a permitir investigar a idoneidade para o futuro contrato. Como aqui a hipótese do “carona” surgia após concluída a licitação, essas contratações não estavam contempladas nos volumes estabelecidos para fins de aferição da habilitação, frustrando o seu fim. Alguém com aptidão para executar determinado volume, de certo objeto, poderia depois deter contratos muito superiores às suas reais capacidades.
O quarto aspecto que ensejava a ilegalidade do procedimento consistia no desrespeito à regra da licitação, consagrada no artigo 37, XXI, da Constituição Federal. Licitar é a regra para a administração contratar, e o decreto, ao instituir a possibilidade do empréstimo de ata entre órgãos, afronta essa sistemática, também reproduzida no artigo 2º da Lei de Licitações.
Ora, em termos práticos, o procedimento de empréstimo da ata possibilita ao órgão carona a contratação de determinado objeto sem a instauração de licitação alguma, ao menos na fase competitiva, sendo isso, para Toshio Mukai[3], considerado a ocorrência do crime capitulado no artigo 89 da Lei 8.666/93.
Pode-se argumentar em favor do empréstimo utilizando-se do fato de a ata ter sido originada de um certame licitatório e, por isso, não se confundir com uma hipótese de dispensa; porém, como o certame foi realizado por outro órgão, estritamente de acordo com suas particularidades[4] (quantidades estimadas para o seu consumo, disponibilidade de pagamento, formas de publicidade próprias, especificações do objeto a ele imprescindível etc.), resta caracterizada a dispensa.
A sistemática de empréstimo da ata então estabelecida, vulnerava ainda o princípio da isonomia. Essa é a quinta das razões que a nosso ver embasaram a crítica ao “carona”. Vulnera-o porque o detentor do melhor preço em uma licitação de registro de preços venceu disputa licitatória com condições e limites determinados. Objeto certo foi licitado, e essas condições foram avaliadas pelos interessados para participar da disputa e elaborar suas propostas. Depois, concluída a licitação, outros, em número incerto, aderiram à ata, promovendo contratos, sem atenção aos limites e condições iniciais.
Além desses, outro aspecto importante a ser considerado, o sexto motivo, portanto, é o fato de que as adesões às atas de registro de preços restringem a fiscalização dos órgãos de controle e o direito de impugnação tanto dos interessados como dos cidadãos. É certo que, sendo instaurado o certame para registro de preços para determinado órgão, aberta está a possibilidade de ser fiscalizado; contudo, quando da adoção da ata pelo órgão carona, dificultado estará o controle desta contratação, até mesmo para saber se o preço registrado realmente lhe é mais vantajoso.
Diante desse cenário, os tribunais passaram a se posicionar contrariamente ao “carona”, fazendo-o de forma veemente. O Tribunal de Contas da União, ante a desenfreada utilização da figura, posicionou-se a respeito da necessidade de se estabelecer limites à sistemática[5]. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, da mesma forma foi enfático ao entender pela impossibilidade de sua adoção[6]
[1] Art. 8º A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem.
- 1° Os órgãos e entidades que não participaram do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados, obedecida a ordem de classificação.
- 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.
- 3′ As aquisições ou contratações adicionais a que se refere este artigo não poderão exceder, por órgão ou entidade, a cem por cento dos quantitativos registrados na Ata de Registro de Preços. (Incluído pelo Decreto n° 4.342, de 23.8.2002).
[2] Artigo 15B – Os órgãos e entidades da Administração estadual poderão utilizar-se de Atas de Registros de Preços realizadas pela União, Distrito Federal, outros Estados e Municípios, desde que demonstrada a vantagem econômica em tal adesão comparativamente aos preços registrados no Sistema Integrado de Informações Físico-Financeiras – SIAFIS ICO ou aos praticados no mercado. (Decreto n° 51.809 de 2007).
[3]“Registro de Preços no Governo do Estado de São Paulo: ‘Caronas’, estaduais e nacionais”. in revista O Pregoeiro, ano IV Janeiro de 2008, pág. 30.
[4] Em relação às particularidades de cada órgão licitante que interferem no certame e no preço final, e que impossibilitam seu aproveitamento por outro ente, o TCU considerou regular a utilização de Sistema de Registro de Preços para a contratação de operadora de planos de saúde, impondo a condição de o edital vedar a utilização da ata de registro de preços por órgãos/entidades não participantes.
Embora não tenha apresentado restrições à tese de adesão de não participantes caronas nesse caso específico, entendeu não haver possibilidade de aferir se o preço vencedor será mais vantajoso ou compatível com a faixa etária do quadro de pessoal do “carona”, pois o valor original da contratação é vinculado às peculiaridades das faixas etárias do pessoal do órgão gerenciador. TCU – Plenário. Processo TC n.° 004.709/2005-3. Acórdão 668/2005.
[5](…) adote providências com vistas à reavaliação das regras atualmente estabelecidas para o registro de preços no Decreto n° 3.931/2001, de forma a estabelecer limites para a adesão a registro de preços realizados por outros órgãos e entidades, visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública, tendo em vista que as regras atuais permitem a indesejável situação de adesão ilimitada a atas de vigor, desvirtuando as finalidades buscadas por essa sistemática, tal como a hipótese mencionada no Relatório e Voto que fundamentam este Acórdão. (Acórdão n° 1.487/2007, TCU, Plenário, Processo n° TC-008.840/2007-3).
[6] “Exame Prévio de Edital. Pregão visando ao Registro de Preços para prestação de serviços de vigilância/segurança patrimonial. Possibilidade de se adotar modalidade pregão, não descaracterizando o atributo de ’serviço comum’, as minuciosas especificações técnicas e memorial descritivo constantes do edital. Inadmissibilidade de utilização do Sistema do Registro de Preços para contratação de serviços de natureza continua da. Impossibilidade de se prorrogar o prazo de validade da Ata de Registro de Preços por conta do princípio da reserva de lei. Desnecessidade de divulgação de orçamento estimado em planilhas de quantitativos e custos. Recomendação, no entanto, para que se divulgue valor total estimado; que se abstenha de exigir 2 (dois) atestados para demonstração de qualificação técnica, bem como de admitir a figura do ’carona’. Determinação de anulação do certame, com recomendações.” (TC-038240/026/08).
“É por esse e outros motivos que o E. Plenário desta Corte vem fortalecendo entendimento, mormente retratado em sede de Exame Prévio de Edital, pela inviabilidade da utilização do ’carona’, nos termos ora instituídos por decreto, nas contratações públicas, tendo em vista que tal admissão frauda o princípio informador da licitação, insculpido na Constituição Federal, consoante o artigo 37, inciso XXI que prescreve ’ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, ser- viços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumpri- mento das obrigações’.” (TC-023456/026/08).