ARTIGO: Um olhar crítico sobre as prorrogações de concessões rodoviárias
* Fernando Marques Vasconcelos Garcia
1. Aspectos gerais
O programa paulista de concessões rodoviárias iniciou em 1998, com a primeira etapa envolvendo a concessão de 12 lotes de rodovias, totalizando mais de 3.500 km, para a iniciativa privada. Essas concessões tinham como objetivo melhorar a infraestrutura rodoviária, garantir investimentos na manutenção e ampliação das estradas, e oferecer serviços de qualidade aos usuários.
Esses contratos tinham previsão inicial de duração de 20 anos. Porém, a ampla maioria desses lotes sofreram prorrogações contratuais. Os contratos que não sofreram prorrogação (significativa) tiveram seus desequilíbrios financeiros compensados em outros lotes de rodovias operados pelo mesmo grupo econômico (caso do Lote 05 – Via Norte). Como exemplo, o contrato do sistema rodoviário Anhanguera Bandeirantes (Concessionária Autoban) foi prorrogado até 2037, totalizando 39 anos desde a sua assinatura.
Contratos de longo prazo são, por sua natureza, “incompletos”. Não há como prever cada detalhe, cada fluxo de caixa com exatidão. Eventos imprevisíveis são esperados e o melhor que a Administração Pública pode fazer é elaborar uma matriz de risco coerente, seguindo o já consagrado princípio de que os riscos devem ser atribuídos a quem tem melhor condição de suportá-los.
Tendo em vista o estabelecimento desta matriz, os principais riscos ou desequilíbrios contratuais de responsabilidade do Poder Concedente, que se materializam ao longo do termo contratual, possuem diversas naturezas. A seguir, resumo das principais naturezas destes desequilíbrios:
• Fatos imprevisíveis: eventos que não poderiam ser previstos ou calculados anteriormente, como a Pandemia de COVID-19, que reduziu drasticamente o fluxo rodoviário.
• Fato do príncipe: ações governamentais que interferem (direta ou indiretamente) na concessão, como a criação ou cobrança de novos impostos (por exemplo, a cobrança de ISSQN sobre a arrecadação de pedágio que não foi prevista na modelagem dos projetos da primeira etapa do programa paulista de concessões rodoviárias).
• Investimentos: inclusão de novas obras que se mostram necessárias anos ou décadas após o início da vigência contratual, que não foram previstas na modelagem inicial do projeto.
• Questões tarifárias: ausência de reajuste anual das tarifas (habitualmente por pressão política) ou isenção total/parcial a determinados grupos (como a suspensão de cobrança do eixo suspenso de caminhões, iniciada em 2018 em São Paulo, durante a greve dos caminhoneiros).
Um contrato originalmente assinado no final da década de 90 ou início dos anos 2.000 não possui as mesmas inovações técnicas, jurídicas e econômicas dos projetos recém-concedidos à iniciativa privada. Dentre tais inovações podemos citar a previsão da implantação do sistema de cobrança de pedágio free-flow, possibilidade de utilização de arbitragem para resolução de conflitos, novos índices de medição da qualidade do serviço (que preveem novos investimentos após a saturação no tráfego em determinado trecho rodoviário) ou ainda um sistema de contas, que permite que determinadas receitas auferidas (por exemplo a outorga ofertada pelo vencedor do leilão ou multas aplicadas a veículos por infrações cometidas na rodovia) sejam segregadas em contas bancárias específicas e que só podem ser utilizadas para saldar eventuais desequilíbrios definidos em contrato.
Portanto, ao prorrogar um contrato “antigo”, desta primeira etapa de concessões rodoviárias, o Estado renuncia a cláusulas modernas, que beneficiariam não apenas o usuário, mas também a concessão em si e o relacionamento entre poder público e parceiro privado na resolução de conflitos.
2. Reequilíbrio contratual: métodos empregados
As principais formas de restabelecer o equilíbrio econômico contratual dos contratos de concessão comum (e das parcerias público-privadas) envolvem alterações tarifarias, pagamentos realizados pelo poder público, alterações nos investimentos previstos e prorrogações contratuais.
Em teoria, onerar os próprios usuários de uma rodovia, via majoração de tarifas de pedágio, por desequilíbrios econômicos em determinada concessão parece justo, pois não afeta os não usuários do sistema. Inclusive, tal método é previsto no art. 9º, §2º da lei Federal 8.987/95, que prevê a revisão tarifaria (que não deve ser confundido com reajuste tarifário, realizado anualmente) para manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Ocorre que esta alternativa não é politicamente bem-vista pela população. Se, conforme foi comentado, reajustar as tarifas anualmente pelo índice inflacionário já causa desconforto na classe política, especialmente em ano eleitoral, revisar tarifas por índice acima da inflação acumulada nos 12 meses anteriores, é uma das alternativas menos consideradas pelo poder público.
Outra forma de reequilibrar contratos com pendências financeiras favoráveis ao parceiro privado é o pagamento em dinheiro pelo setor público, ou alternativa semelhante, como descontos ou isenção de pagamento de outorga (fixa ou variável) e taxa de fiscalização (que no caso das concessões rodoviárias é devida à ARTESP).
Acontece que, pela indisponibilidade orçamentária de realizar o pagamento em pecúnia, esta alternativa é pouco usual. A possibilidade de desconto na outorga fixa (valor pago pela concessionária por ter vencido o leilão) é inexistente, tendo em vista que este valor é habitualmente pago à vista.
Por vezes, o ente fornece descontos no pagamento da outorga variável (um percentual da arrecadação) para compensar outros desequilíbrios. Porém, este método quase nunca é suficiente para quitar o montante devido, tendo em vista que habitualmente a outorga variável não supera os 3% da arrecadação tarifária. Os descontos no pagamento da taxa de fiscalização também são utilizados, mas esta prática não é recomendada, tendo em vista que retira recursos e enfraquece a agência reguladora. Portanto, o pagamento em dinheiro pelo setor público (de forma direta ou indireta) ou não é uma alternativa utilizada, ou quando utilizada não consegue reequilibrar completamente um contrato.
Em relação a alteração nos investimentos previstos no projeto inicial, seja com uma redução ou postergação, também não é muito eficaz. Os desequilíbrios geralmente não ocorrem no início do contrato (com exceção dos riscos assumidos pelo Poder Público em obras), ou demoram anos para que todo o seu processo de reconhecimento pelo Ente seja finalizado. Já os principais investimentos em concessões são projetados em seus anos iniciais, portanto, não haveria mais obras (suficientes) para serem alteradas ou postergadas.
Dessarte, o principal método utilizado para reequilibrar contratos de concessão é a prorrogação contratual. Tal mecanismo, em primeiro momento, parece ter o potencial para resolver todos os problemas mencionados nos parágrafos anteriores: não onera o usuário (portanto, sem custo político para o administrador público), não afeta o caixa do Tesouro, tampouco reduz ou posterga investimentos. Contudo, tais argumentos não se sustentam após uma análise cuidadosa dos efeitos desta medida.
Os usuários são diretamente impactados na medida em que as rodovias não preveem novas obras para mitigação do tráfego em determinados trechos com trânsito frequente, ou ainda carecem de métodos atualizados de cobrança, com eliminação das praças de pedágio (características previstas em novos projetos). Tais fatores mencionados causam prejuízo de tempo e gasto de combustível para os usuários e não merecem ser desprezados.
Também não é verdade que exista uma vantagem do método de prorrogação contratual em relação a suposta ausência de redução ou postergação de investimentos. As concessões que são relicitadas, após o advento do termo contratual anterior, preveem relevantes investimentos nas rodovias: duplicações de faixas, novos itens de segurança (como passarelas para pedestres e proteção para ciclistas), criação e melhoria de acessos a municípios etc.
Como exemplo, a concessão do Lote 31 – Econoroeste, ocorrida ao final de 2022, que contém três sistemas rodoviários, sendo dois deles oriundos de concessões anteriores, previu investimentos (em todos os sistemas) de aproximadamente R$ 10,4 bilhões de reais nos próximos 30 anos. Concessões prorrogadas não contêm sequer uma fração desses valores previstos para novos investimentos.
Em relação à suposta economia que o Tesouro realiza em não ter que desembolsar recursos para quitar os desequilíbrios, tal argumento também não se mostra muito preciso. Em que pese não ocorrer dispêndio de recursos, o Estado deixa de arrecadar valores com uma nova licitação. Ao realizar novos leilões, os montantes obtidos de outorgas pagas pelos vencedores dos certames são significativos. No caso relatado no parágrafo anterior, a Concessionária vencedora do certame pagou mais de 1,2 bilhão de reais pelo direito de explorar as rodovias.
3. O cálculo das prorrogações contratuais.
Os contratos de concessão sofrem prorrogações, chegando a quase duas décadas em determinados casos, quase duplicando o termo inicial, pois para calcular o prazo a ser concedido deve-se levar em conta o valor do desequilíbrio, a época em que ele aconteceu e a taxa de juros utilizada para corrigir os valores. O exemplo a seguir simplifica o entendimento:
Uma concessão iniciada em 2000, cujo contrato encerraria em 2020 originalmente, teve um determinado desequilíbrio a favor da concessionária no ano de 2006. O Estado então decide que este desequilíbrio será pago na forma de prorrogação contratual.
Para calcular em quanto tempo o contrato deverá ser prorrogado é necessário primeiramente corrigir o valor desde 2006 até 2020, utilizando tanto a TIR (taxa interna de retorno) do contrato, cujo valor pode variar (nas primeiras concessões paulistas o valor era próximo de 20%), aplicar também a inflação do período, para então descobrir o valor da dívida em 2020. A partir daí, por meio da utilização de planilhas eletrônicas, projetar a arrecadação futura e descontar deste valor. Importante ressaltar que o saldo anual do montante que ainda não foi quitado também é corrigido pela TIR + inflação dos anos seguintes.
No exemplo simplificado acima, um desequilíbrio de apenas R$ 10 milhões calculado em 2006, de valor modesto tendo em vista os montantes envolvidos em concessões de rodovias, ao ser corrigido em 20% ao ano atingiria pouco mais de R$ 128 milhões em 2020 – sem considerar a inflação do período. Portanto, um valor que não foi reequilibrado em 2006 teve seu valor multiplicado por mais de 12 vezes em 2020.
Mauricio Portugal Ribeiro e Denis Nefussi Mandel (2015) afirmam que o reequilíbrio por prorrogação de prazo assemelha-se em muito a um financiamento por parte do poder concedente. Este, toma empréstimo junto às concessionárias, seja para realizar algum novo investimento não previsto, ou para compensar eventual falta ou atraso de reajuste de tarifas, a valores muito superiores aos que bancos públicos como Caixa Econômica Federal e BNDES cobrariam. Para os autores, o custo deste “empréstimo” junto a concessionária seria de 8-9% a.a. em termos reais, podendo chegar a 17-18% em termos nominais a.a. Já o custo de captação com entes públicos seria de 6-8% a.a. em termos nominais.
4. Alternativas à prorrogação contratual
Conforme demonstrado, o método de extensão de prazo das concessões para reequilibrar os contratos não resolve o problema de maneira satisfatória. A Administração Pública possui alternativas para reequilibrar tanto contratos que já estão em vigor quanto outros que serão futuramente assinados.
Para as concessões atuais o Estado pode realizar os pagamentos de desequilíbrios pari passu com as suas ocorrências. Em que pese a ocorrência de desembolso do Tesouro, ao menos não há a correção de valores pela TIR + inflação, que pode multiplicar em muitas vezes o montante do desequilíbrio.
Nessa linha foi editada a Resolução SPI nº 19/2023, que estabelece “procedimento para avaliação, no âmbito da Secretaria de Parcerias em Investimentos, de medidas para mitigação do impacto de desequilíbrios econômico-financeiros em contratos de delegação de serviços públicos”. Este normativo prevê que seja realizado o imediato reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos após determinado desequilíbrio atingir valores significativos e, para efetivar tal ação, descreve diversas medidas, dentre elas, o pagamento de valores à concessionária.
Caso não haja disponibilidade financeira do Estado reequilibrar o contrato em tempo hábil, uma alternativa que possui é realizar nova licitação ao término do contrato atual e utilizar parte da outorga paga pelo licitante vencedor para compensar os valores devidos à concessionária anterior.
Utilizando tal procedimento o valor desequilibrado será corrigido apenas até o término contratual, em oposição a alternativa da prorrogação contratual, na qual os valores ainda não quitados continuam a ser corrigidos até o término do novo prazo prorrogado.
Para novos projetos que ainda não foram licitados o Estado pode, e já vem utilizando, de novas iniciativas como o sistema de contas. Conforme já mencionado no primeiro tópico, esse sistema segrega valores em contas específicas que só podem ser utilizadas para quitar determinados desequilíbrios previstos em contrato.
Indo além, o Estado poderia realizar a criação de fundo destinado para reequilíbrios de contratos de concessões e PPPs. Tal fundo poderia ter receitas oriundas de frações de outorgas de novas concessões que, como foi demonstrado, atingem cifras bilionárias. Tal procedimento evitaria que os valores dos desequilíbrios se multiplicassem com o passar dos anos e, com a não prorrogação de contratos, anteciparia para o Tesouro eventual outorga paga em um novo leilão.
Por fim, diante da análise do programa paulista de concessões rodoviárias e dos desafios enfrentados em manter o equilíbrio contratual ao longo dos anos, é evidente que as prorrogações contratuais, embora sejam uma possibilidade comum, não constituem a solução ideal para resolver os desequilíbrios financeiros e operacionais. A prorrogação de contratos antigos muitas vezes impede a implementação de inovações e benefícios que surgem com os projetos mais recentes concedidos à iniciativa privada.
É fundamental que a Administração Pública adote abordagens estratégicas e alternativas para reequilibrar os contratos existentes e garantir a viabilidade e eficácia das concessões rodoviárias. Medidas como pagamentos imediatos de desequilíbrio, estabelecimento de fundos específicos para reequilíbrios, e a utilização de outorgas de novas licitações para quitar desequilíbrios se mostram como opções mais eficazes.
Dessa forma, a busca por soluções inovadoras e eficientes torna-se crucial para aprimorar a gestão das concessões rodoviárias, promover a qualidade dos serviços prestados aos usuários e manter um ambiente de negócios saudável e sustentável para as concessões a longo prazo.
* Fernando Marques Vasconcelos Garcia, CFA, é Agente da Fiscalização do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)
Fonte: TCESP