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Artigo: Saúde Mental dos Servidores Públicos no contexto do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

 

*Fernanda Borges Keid

Muito embora a saúde mental seja um problema antigo, ela ainda é permeada de estigmas. A discriminação, a desinformação e até mesmo o autopreconceito impedem que pessoas busquem e obtenham a ajuda adequada, para a devida recuperação.

Segundo dados do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), no Mundo, 14,6% dos anos vividos com incapacidade são causados por transtornos mentais, sendo mais de um terço deles devido a transtornos depressivos. O Brasil possui um dos maiores índices de depressão da América Latina. A prevalência da depressão entre a população adulta cresceu 36,7% entre 2013 e 2019, e atualmente alcança um a cada dez indivíduos com pelo menos dezoito anos de idade.

Apesar da dimensão do problema, sete a cada dez adultos com sintomas de depressão não recebem nenhum tipo de tratamento. Para diminuir essa lacuna, a Organização Mundial da Saúde recomenda incorporar serviços de saúde mental em todos os níveis de cuidado, incluindo a atenção primária.

Ainda de acordo com o IEPS, especificamente no ambiente de trabalho, os afastamentos processados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cresceram mais de 30% após a pandemia, com mais de 200 mil pessoas afastadas de seus empregos, somente em 2021, por problemas como depressão, ansiedade e outros transtornos mentais.

O conceito de saúde carece, diante deste cenário que se apresenta, ser entendido de forma ampla, para abranger a parte física e a parte mental, sendo que uma influencia diretamente a outra, revelando-se essencial superar a subjetividade e a intangibilidade dos problemas concernentes à perda da saúde mental, na medida em que, por muitas vezes, são ignorados por parte do governo, da sociedade ou, até mesmo, por aqueles que padecem dessas doenças em silêncio, apenas para evitar que se descortine alguma “fragilidade de caráter” ou algum “desequilíbrio emocional”.

Quanto à relação de saúde e trabalho do setor público, temos muito a caminhar. A Administração Pública, historicamente, investiu mais em ações de controle, como a realização de perícias médicas e o monitoramento individual do absenteísmo, do que em ações coletivas de saúde, o que produziu pouco impacto na qualidade de vida e bem-estar.

Para entender a magnitude do problema específico da saúde mental no setor público, necessário se faz ponderar que servidores públicos carregam culturalmente uma imagem estereotipada de forma negativa, o que afeta a própria autoestima e o decorrente adoecimento. Tal cenário ainda é agravado pelas percepções da sociedade contemporânea de que a saúde de forma integral pode ser facilmente atingida com alguns padrões de comportamento a serem seguidos e que estão ao alcance de todos.

Lideranças do setor público, diante de suas atividades cotidianas relacionadas ao funcionamento da máquina administrativa, com exigências cada vez mais voltadas aos resultados, têm se deparado, portanto, com imensos desafios no que diz respeito à saúde mental de suas equipes e de si mesmos, principalmente, por interpretarem que esse assunto é de conhecimento exclusivo de profissionais da área da saúde.

Contudo, ações relacionadas à prevenção e intervenção precoce em agravos de saúde mental devem ser inseridas na concepção dos gestores públicos atuais, que precisam incorporar a ideia definida na Carta de Ottawa de 1986 (Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde) de que é necessária a capacitação das pessoas e comunidades para modificarem os determinantes da saúde em benefício da própria qualidade de vida (bem-estar físico, mental e social), o que requer sair do foco da doença para o da saúde, com a construção de ações em rede e a participação efetiva de vários atores: a Administração, o gestor e os próprios servidores públicos.

Para tanto, um dos principais desafios que permeiam o tema no serviço público está na consolidação de um bom diagnóstico, na medida em que hoje existe uma enorme dificuldade e deficiência na coleta de dados. Isso ocorre, a princípio, por inexistir um sistema nacional capaz de consolidar esse tipo de informações e, ademais, os dados tendem a não reproduzir a realidade, em face das subnotificações daqueles que sentem medo de compartilhar ou até mesmo daqueles que não perceberam os sinais ou sintomas do próprio adoecimento mental, que se torna uma parte de uma atual naturalização do estresse cotidiano/ansiedade.

Nessa perspectiva, a escassez de informações aliada à inconsistência de dados reais dos servidores públicos dificulta a definição de prioridades para o adequado planejamento e implementações de ações efetivas e eficazes voltadas à saúde mental dos indivíduos.

Devo reconhecer que, ainda que a passos lentos, a partir da inserção da saúde e bem-estar como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n.º 3 na Agenda 2030 da ONU, o tema tem ganhado relevância nos debates públicos, com novas iniciativas que almejam desmistificar o assunto e democratizar a pauta para todos os níveis. A título de exemplo, foi lançada a Frente Parlamentar Mista para Promoção em Saúde Mental, que tem como objetivo o fortalecimento e promoção de avanços na construção de políticas públicas em saúde mental. Ainda, em 2023, foi lançada cartilha com princípios e diretrizes – Guia Parlamentar de Saúde Mental – que busca construir um contexto capaz de auxiliar os parlamentares na discussão desta temática tão vasta e tão relevante para a sociedade.

Apesar de algumas políticas em âmbito nacional ganharem relevância, verifica- se que cada ente/órgão público acaba por desenhar e implementar diretrizes e políticas de saúde mental de forma descentralizada. Na área da segurança pública, por exemplo, em janeiro de 2023, foi sancionada a Lei Federal n.º 14.531/2023, que prevê ações em três níveis de prevenção e promoção da saúde pública para os policiais. Notadamente na prevenção primária, serão utilizadas estratégias coletivas como convívio social, além de programas de conscientização e capacitação para identificação de casos de risco.

Já na área da educação paulista, o Governo do Estado de São Paulo instituiu o programa Psicólogos na Escola, tendo, em 2023, 368 profissionais que passaram a integrar as equipes das escolas estaduais.

Diante destas perspectivas, nota-se que a saúde mental carece, de fato, ser tratada como tema prioritário dentro de órgãos públicos, sendo a prevenção primária a melhor ferramenta para evitar o agravamento de casos, que possam culminar em afastamentos ou até em desfechos mais trágicos. Para além disso, enxergar a saúde mental de forma aberta, clara e natural no ambiente de trabalho é a parte inicial para derrubar os estigmas que permeiam o assunto e para possibilitar que os pares possam pedir ajuda, sem medos ou preconceitos.

Cabe ressaltar que, no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o bem-estar dos servidores foi considerado eixo temático para a apresentação de projetos inovadores no ano em que a Casa completa 100 anos de existência. Assim, ações e projetos vêm sendo desenvolvidos com vistas a democratizar o assunto, com a adoção de medidas preventivas e terapêuticas voltadas principalmente à proteção da saúde mental, de forma coletiva e inclusiva.

O principal foco dessas ações é a prevenção do agravamento de problemas de saúde mental, de forma prematura e enquanto ainda há saúde, o que se consegue fazer por meio da atenção primária, com o auxílio a colegas, funcionários, familiares ou amigos que se encontrem em situação de crise ou de sofrimento, além de prestar assistência àqueles líderes e gestores, que enfrentam em suas equipes situações cotidianas, as quais possam necessitar de apoio acerca do assunto, em um mecanismo próprio de abordagem e de condução dos casos que se apresentem como demandantes de atenção.

Finalmente, cabe enfatizar que, no contexto do controle externo, o TCESP pode revelar e difundir, como parte de seu papel pedagógico e promotor de boas práticas, ações e projetos que estejam sintonizados com a Política Nacional de Saúde Mental e que possam ser aplicados em outros entes e órgãos públicos, os quais estejam dispostos ao enfrentamento da saúde mental como pauta inserida na garantia dos direitos humanos e do atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana.

*Fernanda Borges Keid é Diretora da Diretoria de Saúde e Assistência Social (DASAS) do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP)

 

Fonte: TCESP

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